Convicto de que haverá acordo entre PS e Governo para viabilizar o OE2025 e afastar o Chega, José Luís Carneiro defende compromissos de investimento na saúde, habitação, educação e transportes.
(Entrevista originalmente publicada no jornal Público em 06 de outubro de 2024)

Quando ainda era opositor de Pedro Nuno Santos na corrida ao PS, José Luís Carneiro causou burburinho no partido por se ter mostrado logo disponível para entendimentos com o PSD em questões orçamentais. Agora, vê o partido a fazê-lo e defende que os compromissos que se assumirem devem comportar visões de médio e longo prazo nas matérias que unem os dois partidos.
A contraproposta do PS que admite a baixa de um ponto no IRC agora e mais nenhum ao longo da legislatura não pode ser considerada radical por condicionar os orçamentos futuros?
A forma mais relevante de se olhar para o IRC é procurar saber se ele cumpre o objetivo da política económica, e essa é a preocupação do PS.
A preocupação do IRS é a de repartição e justiça social; já o IRC é um instrumento da política económica, para intervir na competitividade, ajudar no choque tecnológico. As empresas que investem em inovação, transição digital e energética, na sua capitalização, na melhoria salarial e na coesão territorial devem merecer uma atenção especial da política fiscal.
Mais do que [haver] mais ou menos um ponto no IRC, o importante são os fins a que se destinam. Isso está na proposta do PS de permutar a descida da taxa com o crédito fiscal ao investimento.
O governo já acompanha parte disso, mas também não pode deixar cair toda a sua proposta.
É evidente que este orçamento será do Governo. Tem estado a governar com o orçamento do PS, beneficiou das gavetas com muitos recursos – do PRR, do PT2030, do saldo orçamental – e tem-se limitado a distribuí-los. Está a chegar a hora de conhecermos o orçamento de Luís Montenegro, as suas prioridades, e como pretende levar por diante o tal ímpeto reformista que dizia ter na campanha eleitoral. Até agora, ainda não conseguimos vislumbrar uma perspectiva de reforma e modernização do Estado, da economia e da sociedade. Temos estado apenas a assistir à distribuição dos dividendos que ficaram no saldo orçamental.
O ministro Paulo Rangel já disse que a proposta do PS é desajustada porque quer condicionar os outros orçamentos. Receia que esteja em perigo um acordo?
Eu continuo a valorizar as palavras do secretário-geral de que se abriu a porta para a possível viabilização do Orçamento do Estado para 2025 (OE2025). Está aberta a porta ao compromisso e parece estar a imperar o sentido da responsabilidade para com o país.
Ainda acredita na viabilização do OE pelo PS através da abstenção?
Estou firmemente convicto de que foram criadas as principais condições para que possa haver OE2025 pela abstenção do PS. Contudo, há que manter o diálogo e aguardar pela entrega da proposta de lei no Parlamento. É sintoma de mais coragem estabelecer os compromissos que servem o país do que ceder à tentação de ruptura.
Isso é um desafio ao secretário-geral do PS a não ceder?
Não. É mostrar apoio à coragem que tem demonstrado até aqui. E o mesmo deve ser dito à liderança do PSD que deve estar a ter pressão interna para eleições.
É um caminho que deve ser valorizado pelas partes. Entre a ética das convicções e a ética da responsabilidade, deve prevalecer, em democracia, o método do diálogo e do clima de compromisso. Porque são sinal de coragem para dentro, para as próprias estruturas partidárias, para a sociedade.
O Governo mostrou um sinal de inteligência, porque corrigiu um erro e esteve bem o secretário-geral do PS ao apresentar uma alternativa que propõe uma distribuição do IRC e também de IRS Jovem por sectores nevrálgicos da nossa vida colectiva.
Até onde deve ir agora o PS?
Quando fui candidato à liderança tive uma posição de princípio de que o PS devia evitar, em caso de perda, colocar o PSD nas mãos do Chega.
Significa ter abertura para encontrar soluções. Quer o PS, quer o PSD, devem evitar a polarização excessiva da vida política e da vida social porque ela conduz a um enquistamento da linguagem, que é benéfica para os extremos políticos e prejudicial para o grande centro político e democrático, que é o espaço político reformista.
Onde há muitas convergências entre PS e PSD.
Para além desta dimensão fiscal do IRS e do IRC, há um entendimento implícito, tacitamente aceite, entre PS e PSD, de que devemos continuar com contas certas, ter superavit, encontrar um equilíbrio entre a redução da dívida pública e o reinvestimento, e um compromisso de sustentabilidade intergeracional.
O terceiro consenso é nas prioridades de investimento: na saúde, na habitação, na educação (em infra-estruturas escolares, rejuvenescimento da estrutura humana), nos transportes e mobilidade, e na transição energética, climática e digital.
Há um amplo entendimento político nas áreas vitais para o nosso futuro colectivo que deve ser explícito na proposta do OE2025. Devemos aproveitar esse diálogo entre as lideranças dos dois principais partidos e o entendimento no OE2025 para nos concentrarmos em reformas de médio prazo.
Em que áreas?
No desafio da demografia, que tem impactos brutais no despovoamento e riscos de protecção civil; nas políticas de rendimentos e nas políticas migratórias, para um modelo de integração mais profundo; no combate à pobreza; na reforma do sistema político e eleitoral para o Parlamento e autarquias; na reforma dos poderes do Estado, com a descentralização; na questão da soberania alimentar. Há dimensões de diálogo, de compromisso e de visão reformista que as lideranças políticas têm um dever acrescido de trabalhar.
O PS acusa o Governo de estar a reduzir o Orçamento do Estado às duas questões do IRS Jovem e do IRC, mas não foi o PS que o fez? Sem conhecer o Orçamento, disse que o viabilizava se não incluísse os dois impostos.
Sim, porque o PS teve a consciência de que o IRS Jovem, como foi proposto, e o IRC significavam, a médio prazo, uma perda de 2500 milhões de euros de receita com um impacto futuro na capacidade de financiamento das funções sociais, económicas e estratégicas do Estado.
O Governo anunciou que vai fazer mais quatro novos hospitais, todos em PPP. Essa estratégia é correcta para o PS?
A prova de que não é que temos denunciado a visão mais liberal do PSD na forma como está a abrir o SNS às experiências de atendimento de natureza privada, e que a médio e longo prazo pode colocar em causa o modelo universal e tendencialmente gratuito que hoje temos no SNS.
Mas vai viabilizar essa visão…
Entraremos na discussão orçamental depois da sua apresentação. Agora foi uma aproximação política para desbloquear estes dois instrumentos fiscais.
E como fica a questão da lealdade, confiança e da boa-fé? Se há acordo para o PS viabilizar, a partir daí o Governo tem carta branca para o resto do Orçamento.
É evidente que o OE que nos será apresentado não é o Orçamento do Estado do PS. Por um lado, tem que passar, mas ele vai ser avaliado.
A questão não é consensual dentro do PS. Há presidentes das federações recém-eleitos e autarcas que não querem eleições antecipadas, porque se o PS perder terão uma derrota do partido colada a autárquicas, com o risco de contaminação.
Vamos ser claros: vitória ou derrota, estamos longe de saber qual seria o resultado das eleições. Julgo que é de senso comum que não há na sociedade civil – e os autarcas lêem-na – um sentimento favorável às eleições. Ninguém quer eleições.
Já como candidato defendi que, tendo em consideração as tendências e o clima de polarização e de progressiva radicalização, tudo deve ser feito para que o grande centro político e social seja capaz de encontrar os compromissos que sirvam o país.
Nas jornadas parlamentares do PSD e do CDS, quando se falava do diálogo e da concertação, não houve um interveniente que deixasse de atacar frontalmente o PS e a sua liderança, e o clima do debate no plenário também… é evidente que isso não contribui para a distensão do clima político. A linguagem de enquistamento agrada aos extremos políticos, por isso devemos evitá-la. Houve um teórico que falou do chamado radicalismo defensivo: adopta-se um radicalismo na linguagem para falar a núcleos mais encrespados, quer na vida interna dos partidos, quer na sociedade, e depois encontrar soluções de diálogo. Admito que esse radicalismo [do PSD] poderia traduzir alguma insegurança no desfecho das negociações.
Ainda há margem para o PS conseguir trazer o Governo um bocadinho mais para o seu lado?
Não quero estabelecer essas linhas porque isso iria contribuir para um ambiente menos favorável ao entendimento.

No debate quinzenal, Pedro Nuno Santos assumiu-se centrista. É uma descrição que também usa para si?
Acho importante que, tendo em conta a nossa identidade, história e cultura política, o secretário-geral se posicione no centro político, no centro-esquerda. Assim como entendemos que o PSD não deve ficar a refém da direita mais extremista, também entendemos que o PS deve conservar a sua autonomia estratégica em relação às opções políticas do futuro.
Vê aqui uma evolução da forma de funcionar e pensar do secretário-geral, que era tido como mais à esquerda, impulsivo, imprevisível?
Eu devo evitar fazer considerações sobre a forma como a liderança do partido se está a posicionar. A liderança deve reflectir a estrutura de pensamento da direcção nacional, da comissão política e do secretariado. Tem havido uma defesa dos valores fundamentais e uma convergência para o diálogo e para um compromisso que corresponda a uma visão reformista, mas não de ruptura.
Como avalia essa liderança?
Essa avaliação far-se-á em 2026, quando houver congresso. Houve uma disputa eleitoral, houve uma eleição, houve quem ganhou, houve quem perdeu. Eu serei um factor de estabilidade, para fortalecer as posições do PS, nos termos em que seja solicitado.
De novo como autarca?
Fui autarca oito anos na oposição, 10 anos no poder. Fui secretário de Estado das Comunidades e ministro da Administração Interna. Estarei sempre disponível onde o meu partido entender. É uma avaliação que tem que ser feita em cada momento.
Numa câmara de peso, como o Porto, por exemplo…
O PS tem nas autárquicas um dos seus maiores desafios. Temos cerca de 70 presidentes de câmara que deixam de exercer suas funções [estão no terceiro mandato], e temos o amplo desafio de entrar no eleitorado urbano, mais jovem, dinâmico, e exigente com as lideranças políticas. E é por isso que o PS tem que se bater para ganhar as câmaras de Lisboa e do Porto. É incompreensível deitarmos a toalha ao chão em Lisboa onde o PS perdeu por escassos 2300 votos.
A cidade de Lisboa padece hoje de várias questões, desde as da mobilidade, da qualidade e limpeza do espaço público, da integração e inclusão, da super-pressão que há no mercado habitacional. O Porto também.
E o PS tem que garantir a transição em câmaras eleitoralmente muito relevantes como Sintra, Gaia, Gondomar, Valongo, Paços de Ferreira, Guimarães, Amadora. Há capitais de distrito, como Braga, Vila Real, Bragança, Aveiro, Évora, Santarém com oportunidade de conquista ou para rejuvenescer o projecto do PS. Temos 152 autarquias, quatro delas em coligações.
Na última Comissão Nacional defendi que deve haver uma equipa de trabalho de planeamento da dimensão programática, de preparação e de perfil de renovação dos autarcas. Eu estaria disponível, com a experiência que tenho, para contribuir para esse trabalho.
Tem ou não disponibilidade total para aceitar um desafio numa dessas câmaras grandes?
São assuntos que têm que ser objecto de ponderação e de diálogo com o secretário-geral. Nós temos nomes no partido, com prestígio e força, que estão disponíveis para serem candidatos, temos outros da sociedade civil. O pior que pode acontecer é haver uma excessiva personalização das candidaturas, uma fulanização, porque isso conduz a clivagens entre as pessoas e deve ser evitado a todo o custo.
Isso não funciona assim em todo o lado. No Porto há mais essa personalização.
No Porto há três grandes blocos: um dos socialistas, mais à esquerda ou mais ao centro; um social-democrata, liberal; e um bloco independente, muito forte. Admito que, com a saída de Rui Moreira, estarão disponíveis para olhar para a dimensão programática.
Admite que o PS possa apoiar um independente de peso?
O mais relevante do ponto de vista político é manter o objetivo de ganhar Lisboa e Porto, procurar avaliar a dimensão programática para as autarquias, definir as linhas comunas para as áreas metropolitanas, a nossa política de cidades e local, e, em função disso, encontrar perfis ganhadores e avaliar as expectativas dos cidadãos.